Paulo Lauret e o ensino da Educação Física em Portugal no último quartel do século XIX

 Luís Mota

Autor: Luís Mota Filiação: Instituto Politécnico de Coimbra, Escola Superior de Educação (IPC, ESE) | Grupo de Políticas e Organizações Educativas e Dinâmicas Educacionais, Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX, Universidade de Coimbra (GRUPOEDE, CEIS20, UC)

PAULO LAURET E O ENSINO DA EDUCAÇÃO FÍSICA EM PORTUGAL NO ÚLTIMO QUARTEL DO SÉCULO XIX 

 RESUMO 

O texto centra-se na ação de Paulo Lauret (1852-1918) em prol da difusão e implementação da educação física em Portugal expressa no reconhecimento público de que foi alvo a sua presença e atividade na cidade do Porto, considerada um elo do desenvolvimento do gosto pela ginástica naquela cidade. Pretende-se dilucidar como a ação, o percurso e as propostas pedagógicas do professor ilustram esse investimento na promoção da educação física. Como é que a sua atuação promoveu a educação física? Que argumentário mobilizou para justificar a importância da educação física? Que papel cometia à ginástica no domínio do educacional escolar, nomeadamente, ao nível da instrução primária e do ensino normal? Na abordagem a esta problemática privilegiaram-se fontes escritas, sujeitas a análise documental com recurso ao método crítico, compaginando-se impressos publicados por Paulo Lauret como manuais, guias, opúsculos entre outros, com a sua colaboração em publicações periódicas, com especial atenção dedicada ao título por ele criado, O Gymnasta (1878) (e seus sucedâneos), de que foi diretor e proprietário (e redator). Recusando os excessos e os efeitos nocivos da ginástica, defende a sua prática com o objetivo de fortalecer e regenerar corpos, potenciando as vantagens de uma educação intelectual.

Documentam-se preocupações com a atividade física, pelo menos, desde a antiguidade clássica. Na sociedade ocidental será durante a construção da modernidade e em tempo de afirmação da ciência e da tecnologia que essas inquietações emergem como relevantes para o desenvolvimento do indivíduo. Sentidos de evolução do processo histórico que compaginam o crescimento económico, o aumento dos aparelhos administrativos, a complexidade burocrática, a industrialização e a crescente mecanização, o desafio da inovação tecnológica e do desenvolvimento científico, a concentração da população e o alargamento das cidades abrem para novas formas de organização das formações sociais, para regulações de comportamentos e atitudes que deviam disciplinar a ação das pessoas de modo a sentirem-se constituintes de um coletivo, para a intensificação das interações sociais e novas formas de sociabilidade.

Os Estados-nação, focalizados na sua consolidação, empenhavam-se por se dotar de uma população capaz de atender à competitividade económica, à produtividade, ao sentimento nacional e ao esforço de guerra. A disseminação de uma vulgata de raiz iluminista, sublinhando um Homem responsável pela sua condição, a par da medicina, que assegurava que a capacidade física das pessoas dependia do cuidado que se tinha com o corpo, revelaram-se decisivas para a disseminação do conceito de educação integral. Num primeiro momento, a educação integral traduz tão-só o reconhecimento da necessidade de articular educação física, intelectual e moral. No século XIX desenvolve-se uma vasta literatura sobre a problemática do corpo e do exercício físico (Nóvoa, 2005) que vai procurar articular as práticas de higiene e da saúde com a formação moral dos indivíduos. A ideia era formar pessoas saudáveis, robustas, autodisciplinadas e de caráter. Contudo, a realidade social e cultural impunha as suas dinâmicas e inércias pouco propícias à disseminação do exercício físico tido por necessário a essa formação do cidadão moderno e racional. Em Portugal, ao longo da centúria de oitocentos, a difusão de uma preocupação com a educação física e as práticas de higiene e saúde esbarram, desde logo, com as condições materiais de existência da larga maioria da população que essencialmente vivia para assegurar as suas condições de sobrevivência. Por seu turno, o processo de escolarização revelar-se-ia demasiado lento e não abrangia a esmagadora maioria da população. Para tanto basta recordar que a taxa de analfabetismo se situava em 80%, por alturas de 1875 e, vinte cinco anos depois, não descera a fasquia dos 75%, acentuando o atraso português relativamente às nações europeias, mesmo face àquelas que hoje consideramos o sul da Europa, como era o caso da Espanha, França ou Itália. A penetração do discurso higienista e médico tardou a ter impacto no currículo escolar e a alterar as práticas educativas. A própria elite, aparentemente, estava pouco atenta à problemática do desenvolvimento físico e, em geral, da educação das suas crianças e jovens, não considerando, obviamente, a conveniência do exercício físico generalizado. É o que podemos depreender das palavras de Ricardo Jorge, no prefácio da tradução da obra Educação (1888) do filósofo inglês Herbert Spencer:

O povo, n’aquella suprema inconsciencia propria d’um paiz d’anaphabetos, ignora que a educação integral faz parte intrinseca das instituições democraticas. A burguezia, essa que dá hoje o tom dominador á sociedade e á politica, na maxima apathia pelos problemas pedagogicos, não cura dos males physicos e intellectuaes que aos seus filhos infligem as escholas publicas […] (Jorge, 1888, p. X).

Na verdade, o país político vivia hesitante diante da evidente carência educacional que caracterizava a generalidade da população portuguesa. Mesmo quando a legislação acompanhava uma retórica mais generosa pouco se progredia. As escolas continuavam a não ser suficientes para acolher um ensino obrigatório e, em geral, não tinham as condições higiénico-pedagógicas adequadas. Os estabelecimentos de ensino secundário público também estavam longe de proporcionar espaços e equipamentos condizentes com uma educação integral, necessária ao desenvolvimento dos adolescentes que os frequentavam.

A Educação Física, à época, era curricularmente uma utopia. A qualidade da educação em geral levava alguns intelectuais a denunciar a debilidade física e moral desta população escolar (Ortigão, 1992). Na Europa, ao longo do século XIX assistiu-se, paulatinamente, à generalização da educação física e das atividades desportivas. Na Inglaterra, acabou por se dar maior atenção ao desenvolvimento do movimento desportivo, difundindo a ideia da educação integral, consubstanciada no programa que Ricardo Jorge atribui a Spencer e que resumia na necessidade de «robustecer o corpo, enriquecer o espirito, formar o caracter» (Jorge, 1888, p. XII). Uma das mais antigas escolas públicas do Reino Unido, a Rugby School, no final da terceira década do século XIX, promove o desporto para melhorar as capacidades físicas articuladas com a preocupação de educar o caráter, desenvolvendo valores como a lealdade, o companheirismo e o respeito, entre outros. Não tardou que tal entendimento pedagógico se difundisse e generalizasse em Inglaterra e ganhasse adeptos nos demais países europeus. Paralelamente, no continente assistia-se à crescente afirmação de outras leituras e formas de educação física, em geral ligadas a iniciativas em diferentes espaços nacionais, na génese das quais estiveram o hispano-gaulês Francisco Amorós y Ondeano (1770-1848) que criou o chamado método de ginástica francesa, o Per Henrick Ling (1776-1839), criador do sistema gímnico sueco, e o Friedrich Ludwig Jahn (1778-1852), que sistematizou a prática da ginástica transformando-a em modalidade desportiva e criou as associações Turnwerein (clubes de ginástica) para jovens na Alemanha (Sobral, 1988).

A receção da preocupação e da valorização da saúde, física e psíquica, e da higiene, em Portugal, na centúria de oitocentos, contribuiu para a multiplicação de iniciativas e discursos sobre a necessidade de atividade física, do contacto com a natureza e a prática desportiva. Preocupações e entendimentos sobre a importância do exercício físico que só estavam ao alcance dos que dispunham de energia e atitude mental e cultural para a realização de atividades corporais sem caráter produtivo. Na realidade, só uma ínfima minoria na formação social portuguesa do século XIX, apenas uma parte da elite liberal, que em representatividade estava ao nível da do Antigo Regime, se encontrava nessas condições. Na verdade, diferentes setores da sociedade vão convergir e contribuir para esse resultado. Nas décadas de cinquenta e sessenta do século XIX, o setor militar foi o primeiro a valorizar a cultura física no sentido de dotar os homens da robustez física necessária, daí que se tenha assistido, apoiado no método de Amorós, à sua prática nas Escolas do Exército e na Naval e no Colégio Militar, em Lisboa, bem como na Escola de Alunos Marinheiros no Porto (Estrela, 1972). Simultaneamente, a par de militares, o desenvolvimento científico legitimava a intervenção de outros profissionais, como médicos, professores e mestres, em nome do valor e importância da educação física para a constituição e bem-estar das populações.

No último quartel do século XIX, a educação física ganhara visibilidade no espaço público e constituíra-se em problema social, evidente no número de estabelecimentos de ensino que promoviam a prática da ginástica, na multiplicação dos trabalhos publicados e no debate público que se deslocava, progressivamente, do “porque se deve fazer” para “como se deve fazer” (Ferreira, 1998, pp. 299-300). Os poderes públicos só atuaram no final da década de setenta, em 1878 (Decreto de 2 de Maio de 1878, 1879), pela mão de António Rodrigues Sampaio, introduzindo a ginástica no currículo da instrução primária elementar, para ambos os sexos, contudo só foi regulamentado três anos mais tarde, aquando do seu regresso ao governo, e os programas publicados em 1882 (Portugal, 1883). Intervenção algo tardia e que deixa transparecer dificuldades a que não serão alheias a falta de sensibilidade e de conhecimento por parte da classe política, a escassez de recursos financeiros do Estado e as condições de vida de grande parte da população e que terão tido papel especialmente relevante na conformação da mentalidade que sustentava a indiferença neste e noutros domínios.

Na sua Cinésiologia, Paulo Lauret resume, em tom otimista, o processo de afirmação do valor e importância da educação física: Um sábio governo fez uma lei, em 1878; uma illustrada camara fez executar essa lei. Mais ainda: um distincto medico leva seus sábios conselhos ás familias; uma illustrada imprensa rompe os véos espressos e escuros, e faz-se a luz. É isto que se tem observado em Portugal, n’estes ultimos tempos, e é isto o que nos leva a acreditar, que, dentro em pouco, Portugal, a nossa patria, será feliz! (Lauret, 1887, p. 64)

Um entusiasmo, próprio de quem sente que terá contribuído e reconhece a importância da tomada de decisão política mas que deve ser retemperado pelo reconhecimento de um lento processo de escolarização em Portugal, igualmente marcado pela desarticulação entre a norma jurídica e as práticas sociais, configurando a perspetiva de uma construção retórica da educação (Soysal & Strang, 1989) (Candeias, 2005). Ponderações que, de algum modo, são corroboradas na pena de um colaborador de Lauret, C. M. Pereira quando expressa uma certa desconfiança da morosidade do processo de execução da reforma, bem como testemunha a ausência de recursos humanos para a colocarem em prática:

Pela ultima reforma da instrucção primaria em Portugal fica comprehendida a gymnastica como disciplina obrigatoria nas escolas. D’aqui até que se ponha em execução essa reforma, sabe Deus o tempo que decorrerá; mas seja como fôr, crêmos nós que não andaria errado o governo que fosse desde já preparando as cousas de maneira que, na epoca de realização da reforma, houvessem professores habilitados, não só pratica mas theoricamente, para o ensino racional da Gymnastica (Pereira C. M., 1878, p. 1).

As iniciativas particulares jogaram, neste contexto e a este nível, um papel decisivo. A criação do Gymnásio Club Portuguêz (1875), em Lisboa, por Luís Monteiro, e a de um ginásio com condições adequadas do ponto de vista da higiene e à prática da educação física e desportivas (1884), no Porto, por Paulo Lauret, constituíram dois momentos significativos dessas iniciativas (Ferreira & Ferreira, 1997).

Paulo Alfredo Emílio Lauret (1852-1918), natural de Espiçandeira (Alenquer), aluno da Real Casa Pia de Lisboa, aí frequentou as aulas de ginástica do professor Jean Roger que o viria a considerar como “o seu primeiro discipulo e o mais illustre e distincto de quantos ensinou e preparou para mestres” (Pereira, 1889). Chegaria, ainda muito jovem, a ser nomeado professor adjunto de ginástica naquela instituição (Hasse, 1999) (Oliveira, 2011). Mais tarde, após ter viajado pela Europa tomando contacto com diferentes correntes gímnicas e de ter recebido lições de esgrima, já em Portugal, de um célebre esgrimista francês (Lauret, 1887, pp. 93-95), começou a exercer funções de professor de ginástica em diversos colégios da capital (Magro, 1947) (Ferreira, 1998). No final da década de sessenta, entre 1869 e 1871, lecionou no Seminário (Mayor) de Coimbra e na Santa Casa da Misericórdia (1870-1871) daquela cidade, bem como em casas particulares (Hasse, 1999, p. 235). A curta estada na cidade do Mondego indicia, aparentemente, alguma precariedade e falta de consenso, na sociedade conimbricense (e portuguesa), em torno da importância da educação física e da existência de projetos para a sua promoção. A mudança anual de provedor, na Misericórdia, truncou o projeto ao fim de um ano, enquanto no Seminário, a ginástica para além de menorizada em relação a outras disciplinas – bem patente, por exemplo, no facto de Paulo Lauret auferir o vencimento mais baixo de todos os professores do seminário –, tudo parece apontar nesse sentido, terá mesmo deixado de integrar o plano de estudos da instituição (Oliveira, 2011, p. 79).

De regresso à capital exerceria em diferentes estabelecimentos de ensino. Durante quatro anos lecionaria ginástica na Escola Moderna (1876-1880), à época dirigida F. I. Durão. Deu ainda aulas de ginástica nos colégios de António Joaquim Abranches, Barros Proença, Roeder e depois nos de G. Wiperman e de D. Balbina Raphael (Lauret, 1881, pp. V-VI).

Lentamente o país abria-se a novos valores, normas, condutas e práticas sociais que se traduziam num modo diferente de considerar o corpo, compaginando as preocupações da sua conservação com o desejo de melhorar a aparência e de o adequar a um modelo idealizado. Sentimentos associados a uma certa disponibilidade para o recurso aos meios mais recentes no sentido de preservar e melhorar a saúde, de aperfeiçoamento físico e, simultaneamente, de afirmação social. Novas organizações sociais ofereciam tempos e espaços mais versáteis, muito especialmente aos grupos sociais mais favorecidos, para cuidarem do melhoramento do seu corpo e benefício das funções vitais para a vida (Hasse, 1999, pp. 228-230).

Aparentemente, a pressão resultante da procura e do interesse, em 1878, esteve mesmo na origem da criação em Lisboa de um curso noturno de ginástica, do qual foi responsável Paulo Lauret e que, em pleno mês de dezembro, conseguia reunir 22 alunos (Lauret, 1878, p. 4).

Em 1880, desloca-se para o Porto aceitando um convite para ser professor no Colégio Francês, aí fundando o primeiro ginásio da Invicta (Hasse, 1999, p. 282). Acabado de chegar à cidade, um outro convite leva-o a participar na montagem do ginásio do “Instituto Sanitario Hydroterapico” de acordo com todos os preceitos da higiene, tornando-o num espaço com as melhores condições (Oliveira, 2011, p. 82).

No ano seguinte, em outubro, foi nomeado professor auxiliar de ginástica, da Escola Normal do Porto, para o sexo masculino. No ano letivo de 1882-1883, passou a lecionar também na escola para o sexo feminino. Funções que manteria até 1896 (Annuario das Escolas Normaes do Porto, I, 1882-1909, 1909, pp. 105, 109). Entretanto, a sua atividade alargou-se a muitos estabelecimentos educativos do Porto, incluindo alguns dos melhores colégios, mas também de Braga. A título de exemplo refiram-se o Seminário Episcopal, o Hospital dos Alienados, as Escolas Moderna e Académica, os colégios de Nossa Senhora da Glória, S. Carlos, S. Lázaro e Nacional, no Porto, e os colégios de S. Caetano e Académico, em Braga (Lauret, 1887).

No Porto não se limitou a lecionar nos referidos estabelecimentos de ensino e a dar aulas particulares de ginástica e esgrima (Ferreira, 1998). Participou em concursos, festas gímnicas e saraus para que era convidado com seus alunos, bem como nas iniciativas que promovia para divulgação da modalidade, especialmente as sessões de propaganda que ocorreram no Gymnasio Lauret e Sala D’Armas, criado em 1882, e que por vezes contaram com a participação das crianças da Escola Froebel, orientadas por Paulo Lauret. Atividades que constituíram um esforço para fazer sentir aos educadores a necessidade e o benefício da educação física, bem como, separando ginástica elementar, apropriada ao desenvolvimento das crianças, da ginástica acrobática, demonstrar-lhes que os seus receios de verem os filhos “feitos num feixe ou transformados em saltimbancos” eram infundados (Lauret, 1887, pp. 69-71). O desempenho nos espetáculos, pelo dinamismo e desenvoltura de Lauret e seus alunos, parece ter atraído cada vez mais pessoas à causa da educação física. Numa comparação entre as instituições onde Lauret desenvolvia a sua atividade pedagógica, de 1887 para 1891, António Gomes Ferreira destaca, para além do número de instituições, muito especialmente, a sua diversidade e as referências ao ensino do sexo feminino, esta última pelo que indicia do alargamento da faixa da população abrangida (Ferreira, 1998, pp. 302-303). Por esta altura, eram cinco as instituições educativas, no Porto, que possuíam ginásios, as escolas normais e os colégios de S. Carlos, Nossa Senhora da Glória, Santa Maria, Nacional e o quartel de Infantaria 8, diferenciando-se quer pelas condições dos espaços, quer pelo equipamento que tinham disponível.

A par destes ginásios que tinham como destinatários a sua própria população, existia o “Gymnasio Lauret e Sala de Armas” (Ferreira, 1998). Fundado a 11 de fevereiro de 1882 sedeou-se numa Casa do Largo da Picaria, n.º 13 e “logo do principio deu os melhores resultados, concorrendo a elle a mocidade portuense com o enthusiasmo e interesse que inspiram todas as enovações uteis” (Ginásio Lauret no Porto, 1887, p. 19). O seu crescimento levou-o a mudar-se para maiores instalações, no Largo do Laranjal, n.º 4 e, posteriormente, com o contínuo aumento da frequência acabou por surgir a necessidade de um edifício mais espaçoso levando à sua deslocação para a rua do Laranjal, n.º 193. A imprensa caracteriza-o como possuindo todas as diversões próprias de um club, embora se tratasse de uma escola de ginástica e sala d’armas onde “se ensina methodicamente estas duas artes, com notavel aproveitamento dos discipulos, tanto creanças como adultos” e considerando que “nesta nova casa acha-se o Gymnasio Lauret perfeitamente instalado, tendo salas de gymnastica, de armas, bilhares, dança, tiro defferentes jogos, electricidade, banhos etc., o que tudo faz um conjuncto de estabelecimento de primeira ordem” (Ginásio Lauret no Porto, 1887, p. 19). Bem equipado, constituía um espaço agradável, arejado e bem iluminado, habilitado para o desenvolvimento de todo o tipo de aulas de ginástica (médica ou profilática, ortopédica, higiénica e artístico recreativa), contando com a colaboração de um médico e de vários professores de competência reconhecida (Ferreira, 1998, pp. 304-305). O ginásio, em 1887, oferecia diferentes cursos adequados à idade e ao sexo, como se sublinhava n’ O Ocidente:

O ensino no Gymnasio Lauret está devidido em differentes cursos, conforme as idades dos discipulos, e regulado de modo a dar rezultados mais praticos e proveitosos. A sua frequencia é de 100 alumnos devididos do seguinte modo: meninas 7, meninos 33, adultos 60, tem um medico effectivo, o sr. Dr. Aureliano Cirne, e 250 socios protectores (Ginásio Lauret no Porto, 1887).

Contudo, apesar do exposto, o número de praticantes nunca deverá ter sido elevado já que, precisamente no mesmo ano, Paulo Lauret lamentava o facto de o Porto possuir um estabelecimento de educação física com todas as condições e este contar com um número muito limitado de frequentadores:

[…] Existe há cinco annos um estabelecimento de educação physica no Porto (unico no Paiz, nas condições exigidas, e dos primeiros da Peninsula), que dispõe de todos os elementos para bem corresponder ao fim para que foi creado. É triste confessar: vive pobre, é limitadissimo o numero de frequentadores. Não sei a que attribuir esta indifferença publica, se á ignorancia, se á descrença, se á indolência; seja qual fôr a causa, a verdade é a que exponho (Lauret, 1887, pp. 9-10).

O esforço de Paulo Lauret articulou, na sua ação pedagógica e de divulgação, a prática de ensino, nos diferentes estabelecimentos, as aulas particulares de ginástica e esgrima, os saraus em que participou com os seus alunos e as iniciativas de propaganda da modalidade que organizou e levou a cabo, com uma atividade editorial. Publicou diversos livros, de entre eles, manuais, guias, opúsculos, e colaborou em publicações periódicos, nomeadamente n’ O Velocipedista. Órgão dos Velocipedistas em Portugal (1893-1894), mais tarde com o subtítulo Revista Internacional de Sport, Literatura e Noticiosa (1894-1895) (Pinheiro, 2005), e chegou mesmo a criar uma publicação periódica, a primeira no género em Portugal, dedicada à educação física e à ginástica, O Gymnasta, do qual foi diretor, proprietário e redator (Nóvoa (Dir.), 1993, pp. 486-488). Aquando da publicação d’O Gymnasta, Orgão Bi-Mensal de Educação Physica, entre novembro de 1878 e fevereiro de 1879, Paulo Lauret fez-se acompanhar de quatro colaboradores. De entre eles, Carlos Pereira assinou o editorial do primeiro número, afirmando que O Gymnasta vinha “preencher uma lacuna sensível” (Pereira, 1878, p. 1), em Portugal. Assumia-se como porta-voz “de um partido honroso – a educação física” (1878, p. 1) e pretendia constituir um “brado contra a incúria dos governos” (1878, p. 1). A prática da ginástica “com sabedoria e discernimento” (1878, p. 1), argumentava, acautelando a recusa dos excessos e os seus efeitos nocivos, seria o contraponto a um “século de verdadeira febre intelectual e de trabalho sobre-humano” (1878, p. 1) e permitiria fortalecer e regenerar o corpo para retirar todas as vantagens da “educação do espírito” (1878, p. 1).

Justificava que a ginástica enquanto “causa da humanidade” estivera na origem d’ O Gymnasta. Para além dos seus leitores, identificava como audiência o governo, já que a saúde e o desenvolvimento físico dos cidadãos resultante da prática gímnica eram um benefício para a pátria, e os pais de família para considerarem a ginástica “como um dos ramos mais essenciais da educação de seus filhos” (1878, p. 1). Recorde-se que, como assinalámos, foi nesse ano que, do ponto de vista legal, a ginástica passou a integrar os planos de estudo do ensino primário para ambos os sexos. A ginástica e a sua importância emerge durante a existência da publicação, dimensão visível em diferentes artigos. Refletindo sobre a educação, na sua leitura integral – moral, física e intelectual –, que “ensina a formar o espirito e o coração” e a “aperfeiçoar e vigorar o corpo”, Henrique Trigueiros, sublinha a importância de ensinar à criança a par da “cultura dos sentimentos moraes e intellectuaes” a “influencia vantajosa da educação physica, sabiamente administrada”, salientando a importância desta última no seio d’O Gymnasta:

É correlativamente com o systema da educação physica que mais se harmonysa a indole d’esta folha e que por consequencia ha a tratar. Tendo por objeto a educação physica o desenvolvimento das forças, robustecer e fortificar o organismo, e manter a saude do corpo pelos observaveis preconceitos hygienicos, abrange este ramo educativo, theorico e pratico – a gymnastica e a hygiene (1879, p. 4).  A. J. Mello foi igualmente impressivo sobre a essa preocupação, publicando, ao longo de alguns números, sob a epígrafe “A utilidade da gymnastica”. Distinguindo a “gymnastica completa que faz um homem robusto” da elementar “que é útil somente ás creanças” (1878, p. 2) mas salientando que todos os exercícios, do mais simples ao mais complicado, tinham o mesmo fim, serviam para “facilitar a mobilidade dos orgãos necessarios á manutenção da vida, favorecer o desenvolvimento do corpo, consolidar a ossatura, fortificar a constituição” (1878, p. 2) e enfatizava que os exercícios eram muito úteis, especialmente, aos que “sobrexcitam as suas funções cerebraes, repartindo por todos os membros o sangue que o trabalho intellectual faz affluir ao cerebro” (1878, p. 3).

O Gymnasta publicou, ainda, notícias sobre a história da ginástica e, sobre a temática, Paulo Lauret assinou um conjunto de artigos de “ginástica prática”, explicitando exercícios elementares, nomeadamente, movimentos de cabeça, flexão e extensão, do tronco e flexão e extensão do corpo. A ginástica médica também foi objeto de notícia, sendo mesmo publicada uma tese inaugural defendida na Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa. Outras modalidades, como a natação, a esgrima e o tiro com arco também foram noticiadas, tornando-se, O Gymnasta, no primeiro periódico a alargar o seu conteúdo a outros desportos, contudo adotando uma perspetiva mais histórica e educacional do que noticiosa (Pinheiro, 2009, p. 55). Merecem ainda destaque duas rúbricas, especialmente, a Notícias do estrangeiro, espaço de divulgação da ginástica na Europa, entre outros países, na Alemanha e na Holanda. Finalmente, o espaço dedicado aos anúncios e, de entre estes, um que permitiu perceber que Paulo Lauret, além das atividades que lhe apontámos, foi, ainda, importador de equipamento e material gímnico, vindo de Paris, da Casa Carue (Lauret, Anúncio Paulo E. Lauret, 1878). Já radicado no Porto, coincidindo com a fundação do Ginásio Lauret e Sala d’Armas (1882), o professor realizou nova incursão no jornalismo com um novo O Gymnasta. Revista Quinzenal, do qual era redator e que se publicaria entre março e junho de 1882, com a mesma imagem gráfica do seu antecessor, tendo mesmo Paulo Lauret republicado diversos artigos e onde sobressai a colaboração de Augusto Filippe Simões com um conjunto de textos dedicados à educação física. No horizonte desta revista quinzenal coloca-se, novamente, o caráter imperioso da prática de exercício físico, em geral, e da ginástica, em particular, para a humanidade e de novo o dedo é apontado à ignorância e displicência governamentais:

O Gymnasta é um brado contra a incuria dos governos que, adormecendo á sombra de louros colhidos ás vezes no campo do desperdicio, teem deixado definhar e morrer á mingua de uma sã educação moral e physica milhares e milhares de cidadãos. O Gymnasta nasceu do amor á causa da humanidade, que precisa fortalecer-se, regenerar-se no corpo, para se proporcionar com mais vantagem e educação do espirito (Redacção A. , 1882, p. 1). Paulo Lauret aproveita o número da Revista Quinzenal dado à estampa a 1 de abril, para explanar o seu entendimento do que deveriam ser as bases do ensino obrigatório de ginástica. Assumindo uma perspetiva de educação integral, comete à ginástica finalidades como desenvolver o corpo, conservar a saúde e a força, criar resistência à fadiga e promover a destreza corporal.

Na prossecução das finalidades definidas e no sentido de conservar os carateres higiénicos, inteligentes e morais, a lição de ginástica, para o antigo aluno da Casa Pia, deveria ter em linha de conta o momento e as condições para a sua realização, ser completa e útil e obedecer a uma ordem lógica, logo, ser graduada. Quanto ao tempo e lugar da aula, o professor começava por desaconselhar a sua realização após as refeições pois nesse período deveriam evitar-se esforços físicos. Destacava as vantagens das aulas ao ar livre e salientava as preocupações a ter com o piso. Atendendo a que o tempo nem sempre permitia as aulas ao ar livre, acautelava os cuidados a ter em locais fechados, bem como dedicava especial atenção ao vestuário, de uso exclusivo nas lições e após as quais os alunos deveriam tomar um duche frio. Uma lição completa impunha, de acordo com Lauret, colocar em jogo todas as articulações executando largamente os movimentos que as implicavam, sem provocar cansaço ou esgotamento da força.

A utilidade advinha da adequação dos exercícios às atividades quotidianas dos destinatários. As lições deveriam ser interessantes, mobilizando exercícios diversificados, acompanhados da explicação da sua utilidade, mas respeitando as diferenças de idades e as capacidades físicas dos alunos. Naturalmente que as aulas careciam de ordem, de um sentido de progressão, enfim, de um método que permitisse atingir no menor espaço de tempo possível as finalidades pré-definidas, o que obrigava os alunos a saberem obedecer e a disciplinarem corpos e mentes (Oliveira, 2011, pp. 83-85).

Na década de oitenta a ação de Lauret em prol da divulgação e da prática do exercício físico foi intensa. A par do envolvimento na imprensa periódica, o professor que publicou quase uma dezena de livros, cinco dos quais são lançados na década de oitenta e 80% destes são dados à estampa no primeiro lustro desta década. Destaquemos, de entre eles, aqueles que constituíam manuais de ginástica para o sistema de ensino. Em 1881, publicou o Manual theorico-pratico da gymnastica (Lauret, 1881) onde se detetam influências das mais reputadas escolas europeias, nomeadamente alemã, espanhola, francesa mas também sueca (Oliveira, 2011). Dois anos mais tarde daria à estampa o Guia para o ensino da gymnastica nas escólas do sexo feminino (Lauret, 1883).

A metodologia não diferia da utilizada no Manual theorico-pratico detetando-se apenas a utilização de uma gama mais limitada de aparelhos (alteres, vara, massas, escadas ortopédicas e paralelas). A publicação do Guia abriu espaço, a par das recomendações médicas, a alterações no entendimento social sobre o papel do exercício físico no desenvolvimento da mulher e da sua saúde em geral. A ginástica começava a penetrar nas escolas femininas e algumas mulheres começaram a ter aulas particulares. De resto, o Guia para o ensino da gymnastica nas escólas do sexo feminino seria adotado como manual na Escola Normal para o Sexo Feminino do Porto (Escola Normal do Sexo Feminino do Porto. Inventario do Mobiliario d’Esta Escola, 1893).

Paulo Lauret partiria do Porto, abandonando Portugal, em 1896, para ir residir no Rio de Janeiro onde tinha audiência, como o comprova o recente estudo publicado por Andrea Moreno (Moreno, 2015). Do exposto ressalta o esforço e o contributo, comprovável no crescente número de adeptos e praticantes, desenvolvido por Paulo Lauret para a disseminação da educação física e para tornar a ginástica mais credível junto de maiores camadas da população, bem como uma compreensão clara, acompanhada de uma postura consentânea no espaço público, da importância da introdução da ginástica nos currículos do sistema de ensino. Tomando por referência a realidade sociocultural do último quartel do século XIX, Paulo Lauret deveria ter consciência da dimensão do trabalho que desenvolveu.

BIBLIOGRAFIA

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